Crime de "ofensa às forças armadas" (Art. 219 CPM) 

Artigo de André Soares - 06/07/2023

Publicado na revista Consultor Jurídico   

Em 2020, o então ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva, e o então Comandante do Exército, General Edson Pujol, em representação à PGR (Procuradoria-Geral da República), acusaram o ministro Gilmar Mendes do STF (Supremo Tribunal Federal) do cometimento de vários crimes, dentre eles, do crime de “ofensa às forças armadas” (Art. 219 CPM - Código Penal Militar: “Propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do público”); em razão de declarações críticas do magistrado, feitas à época da pandemia da Covid-19, de que o Exército estaria se associando a um genocídio, em referência à presença de militares no Ministério da Saúde, cujo ministro era o General da ativa Eduardo Pazuello. Com esse mesmo “modus operandi” da cúpula militar, o Tenente-coronel do Exército André Soares foi acusado pelo Comandante da 4ª Região Militar, General Ilídio Gaspar Filho, do cometimento de vários crimes, dentre eles do crime de “ofensa às forças armadas”, identicamente ao que o ministro Gilmar Mendes do STF seria injustamente acusado oito anos depois, em razão da publicação do seu artigo “A tropa é o espelho do chefe” (2012); no qual o Tenente-coronel apresentou o fato inconteste de que, em caso de guerra, “a defesa nacional está entregue a comandantes militares que nunca combateram”.

A despeito da absoluta legalidade e assertividade das manifestações de ambos os acusados pelo Exército do cometimento do referido crime, o ministro decano da Suprema Corte Gilmar Mendes foi obrigado a se “recontextualizar” publicamente sobre sua fala, para não ser processado, julgado e condenado pela Justiça Militar. Já o Tenente-coronel André Soares enfrentou maiores dificuldades. Necessitou arrolar em sua defesa no IPM/4ª Região Militar (Portaria Nr 64316.015033/2012-25, de 05/10/2012) um “mega-dossiê” (337 páginas) de ilicitudes institucionais (IPM/4ªRM fls. 256-593), para ser absolvido de todas as acusações no STM (Superior Tribunal Militar).

Por agravante, importa ressaltar que, a despeito do crime de “ofensa às forças armadas” ser tipo penal previsto exclusivamente no CPM, não havendo congênere no CP (Código Penal), os civis também estão a ele submetidos; significando que, se acusados, não serão julgados pela justiça comum, mas sim pela Justiça Militar, identicamente a como teria sido julgado o ministro Gilmar Mendes do STF, caso não tivesse se subjugado publicamente aos militares; e o Tenente-coronel André Soares, caso não tivesse produzido seu “mega-dossiê”.

Ressalta-se que o CPM e o CPPM (Código de Processo Penal Militar) (Decretos-leis nº 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969) foram criados há mais de meio século, a serviço do projeto de poder da ditadura militar; constituindo-se em diplomas legais anacrônicos, autoritários e antidemocráticos. Contudo, contrariamente à devida e urgente atualização do CPM e CPPM, em obediência aos mais elevados preceitos constitucionais de respeito às liberdades individuais e da presunção de inocência, sem olvidar do digno direito à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal; o que se verificou no governo Michel Temer foi o recrudescimento do projeto de poder dos militares, com a promulgação da Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, que demandou exponencial ampliação do rol de crimes militares; constituindo robusto arcabouço jurídico sob a jurisdição da Justiça Militar, cujo espectro da legislação penal castrense passou a tornar militares crimes que antes seriam julgados e processados pela justiça comum.

Quanto à atuação da Justiça Militar, é por demais importante relembrar de bom alvitre as sábias e veementes críticas que lhes foram proferidas em 2013, pelo então presidente do STF e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Ministro Joaquim Barbosa; que, denunciando ao país a "escandalosa" onerosidade da Justiça Militar, defendeu peremptoriamente a sua extinção.

Assim é que o epicentro das apurações da participação da cúpula castrense na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro deflagrou a mais gravosa crise militar desde o término da ditadura, cujo ápice do desvirtuamento militar golpista foi externado pelo General de Exército Richard Fernandez Nunes, Comandante Militar do Nordeste, em seu artigo Mundo PSIC e a Ética Militar, publicado no blog do Exército Brasileiro (Eblog), em 1/2/2023, e reproduzido pela ConJur.

Em seu artigo, o General Richard afirma que "o papel desempenhado pelas Forças Armadas no cenário nacional" está vitimado pelo "atingimento de patamares consideráveis" de "precipitação, superficialidade, imediatismo e conturbação", por "condutas em desacordo com a ética militar". Tem-se, portanto, a comprovação cabal pelo testemunho incontestável de autoridade militar da mais elevada hierarquia do Exército Brasileiro a demonstrar que o país está perigosamente ameaçado por contingências gravemente atentatórias à democracia e ao estado constituído, perpetradas por integrantes da cúpula militar. 

Pelo exposto, suscitam-se questões judiciárias de implicações teratológicas para a democracia e o estado democrático de direito, destacando-se, em respeitosa vênia, três delas sobre a Suprema Corte. A um, causa estranheza a não manifestação institucional do STF e o absoluto silêncio de seus ministros ante ao exacerbado protagonismo da cúpula militar do Exército na consecução dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. A dois, considera-se a pertinência de que tal situação decorra dos ministros do STF estarem vulneráveis ante à eventualidade de acusação jurídica por parte da alta cúpula militar, idêntica à que foi impropriamente perpetrada contra o Ministro decano do STF Gilmar Mendes, em 2020, acusado do crime de “ofensa às forças armadas”. A três, que, esse estado de coisas, por si só, constitui-se em insanável atentado à independência e autonomia do STF; notadamente no ensejo das apurações do Inquérito Nº 4879/STF, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, que investiga, dentre outras, a inequívoca participação da cúpula militar no cometimento dos atos golpistas.

Por derradeiro, se a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro fracassou quanto à implantação de uma ditadura no Brasil; significa que, guardadas as devidas proporções, o mesmo não se pode dizer sobre o ditatorial arcabouço jurídico militar que vige no país. Porque, não estando o Brasil constitucionalmente em estado de guerra (Art. 84–XIX CF); mas, ao contrário, desfrutando glorioso tempo de paz, causa profunda temeridade ao estado democrático de direito que a sociedade brasileira e a Suprema Corte estejam subjugadas a terem seus cidadãos e ministros do STF acusados descabidamente pela mais alta cúpula castrense da perpetração indiscriminada de crimes militares e suscetíveis a condenações pela Justiça Militar; quando menos pela absurdidade do crime de “ofensa às forças armadas”.

 

 


 

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