Crime de "ofensa às forças armadas" (Art. 219 CPM)
Artigo de André Soares - 06/07/2023
Publicado na revista Consultor Jurídico
A despeito da absoluta legalidade e assertividade das manifestações de ambos os acusados pelo Exército do cometimento do referido crime, o ministro decano da Suprema Corte Gilmar Mendes foi obrigado a se “recontextualizar” publicamente sobre sua fala, para não ser processado, julgado e condenado pela Justiça Militar. Já o Tenente-coronel André Soares enfrentou maiores dificuldades. Necessitou arrolar em sua defesa no IPM/4ª Região Militar (Portaria Nr 64316.015033/2012-25, de 05/10/2012) um “mega-dossiê” (337 páginas) de ilicitudes institucionais (IPM/4ªRM fls. 256-593), para ser absolvido de todas as acusações no STM (Superior Tribunal Militar).
Por agravante, importa ressaltar que, a despeito do crime de “ofensa às forças armadas” ser tipo penal previsto exclusivamente no CPM, não havendo congênere no CP (Código Penal), os civis também estão a ele submetidos; significando que, se acusados, não serão julgados pela justiça comum, mas sim pela Justiça Militar, identicamente a como teria sido julgado o ministro Gilmar Mendes do STF, caso não tivesse se subjugado publicamente aos militares; e o Tenente-coronel André Soares, caso não tivesse produzido seu “mega-dossiê”.
Ressalta-se que o CPM e o CPPM (Código de Processo Penal Militar) (Decretos-leis nº 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969) foram criados há mais de meio século, a serviço do projeto de poder da ditadura militar; constituindo-se em diplomas legais anacrônicos, autoritários e antidemocráticos. Contudo, contrariamente à devida e urgente atualização do CPM e CPPM, em obediência aos mais elevados preceitos constitucionais de respeito às liberdades individuais e da presunção de inocência, sem olvidar do digno direito à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal; o que se verificou no governo Michel Temer foi o recrudescimento do projeto de poder dos militares, com a promulgação da Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, que demandou exponencial ampliação do rol de crimes militares; constituindo robusto arcabouço jurídico sob a jurisdição da Justiça Militar, cujo espectro da legislação penal castrense passou a tornar militares crimes que antes seriam julgados e processados pela justiça comum.
Quanto à atuação da Justiça Militar, é por demais importante relembrar de bom alvitre as sábias e veementes críticas que lhes foram proferidas em 2013, pelo então presidente do STF e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Ministro Joaquim Barbosa; que, denunciando ao país a "escandalosa" onerosidade da Justiça Militar, defendeu peremptoriamente a sua extinção.
Assim é que o epicentro das apurações da participação da cúpula castrense na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro deflagrou a mais gravosa crise militar desde o término da ditadura, cujo ápice do desvirtuamento militar golpista foi externado pelo General de Exército Richard Fernandez Nunes, Comandante Militar do Nordeste, em seu artigo Mundo PSIC e a Ética Militar, publicado no blog do Exército Brasileiro (Eblog), em 1/2/2023, e reproduzido pela ConJur.
Em seu artigo, o General Richard afirma que "o papel desempenhado pelas Forças Armadas no cenário nacional" está vitimado pelo "atingimento de patamares consideráveis" de "precipitação, superficialidade, imediatismo e conturbação", por "condutas em desacordo com a ética militar". Tem-se, portanto, a comprovação cabal pelo testemunho incontestável de autoridade militar da mais elevada hierarquia do Exército Brasileiro a demonstrar que o país está perigosamente ameaçado por contingências gravemente atentatórias à democracia e ao estado constituído, perpetradas por integrantes da cúpula militar.
Pelo exposto, suscitam-se questões judiciárias de implicações teratológicas para a democracia e o estado democrático de direito, destacando-se, em respeitosa vênia, três delas sobre a Suprema Corte. A um, causa estranheza a não manifestação institucional do STF e o absoluto silêncio de seus ministros ante ao exacerbado protagonismo da cúpula militar do Exército na consecução dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. A dois, considera-se a pertinência de que tal situação decorra dos ministros do STF estarem vulneráveis ante à eventualidade de acusação jurídica por parte da alta cúpula militar, idêntica à que foi impropriamente perpetrada contra o Ministro decano do STF Gilmar Mendes, em 2020, acusado do crime de “ofensa às forças armadas”. A três, que, esse estado de coisas, por si só, constitui-se em insanável atentado à independência e autonomia do STF; notadamente no ensejo das apurações do Inquérito Nº 4879/STF, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, que investiga, dentre outras, a inequívoca participação da cúpula militar no cometimento dos atos golpistas.
Por derradeiro, se a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro fracassou quanto à implantação de uma ditadura no Brasil; significa que, guardadas as devidas proporções, o mesmo não se pode dizer sobre o ditatorial arcabouço jurídico militar que vige no país. Porque, não estando o Brasil constitucionalmente em estado de guerra (Art. 84–XIX CF); mas, ao contrário, desfrutando glorioso tempo de paz, causa profunda temeridade ao estado democrático de direito que a sociedade brasileira e a Suprema Corte estejam subjugadas a terem seus cidadãos e ministros do STF acusados descabidamente pela mais alta cúpula castrense da perpetração indiscriminada de crimes militares e suscetíveis a condenações pela Justiça Militar; quando menos pela absurdidade do crime de “ofensa às forças armadas”.